No mundo do serviço público há um fato corriqueiro. Aquele funcionário que nada sabe fazer vira chefe, afinal o coitado tem 2 filhos pra criar. Quem não tem pré-requisito para uma determinada função técnica, ganha uma função gerencial um pouco melhor, pelo mesmo motivo: filho pra criar. Então, é um grande negócio, especialmente no serviço público, você ser inútil. Quem sabe faz, quem não sabe (ou é preguiçoso demais) automaticamente ganha um cargo onde possa desenvolver a sua maior especialidade: a de cultivar o ócio, matar o tempo, cozinhar o galo, conversar miolo de pote. Isto acontece inclusive nos meios feitos exclusivamente para garantir a boa vida de seus componentes, como os partidos políticos, por exemplo. Aquele companheiro mais ridiculamente incompetente e imprestável, o ser mais burro, canhestro e zero à esquerda certamente será o candidato do partido, senão, como ele poderá ganhar a vida, coitado? Sua inutilidade foi sua salvação. Ninguém percebe isto de cara e chama o cara de sortudo. Ele não é sortudo, ele é um inútil. Os outros que são trabalhadores e produzem algum suor, cada vez suam mais para chegar onde o zero à esquerda chegou, não conseguem e reclamam, "meu Deus, eu dou um duro danado e não sou recompensado", quando o problema é justamente esse, se fosse um inútil, estaria muito bem colocado. O problema é que a inutilidade é muito mal vista. Talvez por nossos instintos, cinco sentidos e imensa fome, vemos o quanto é útil tudo o que nos alimenta, esquecemos que nossa alma não precisa do mesmo alimento que o nosso intestino. E vivendo como se não tivéssemos alma, achamos lindo que algo seja útil e com isto nos recusamos ver beleza e função na inutilidade. A inutilidade da arte, por exemplo, qualquer arte que sirva para alguma coisa, não é arte, é artesanato, desses vendidos nas feiras de praças. Além da arte, o que mais é inútil? Por que pode ser inútil algo sublime como a arte? Inútil em qual sentido? Até quando? Que vantagem há em se ser inútil? Isto se aplica a tudo? Ou seria o inverso? Aquilo que é inútil, ganha, por isto mesmo, o status de arte, como o incompetente do começo do texto, que ganha uma recompensa pela sua total falta de jeito? Divagar, divagar, vamos divagar com esse andor. Já falamos aqui que a poesia, por exemplo, era útil quando nasceu, pois servia para contar uma história e transmitir oralmente fatos em uma época em que não existia outro tipo de memória. Quando o pergaminho chegou, a poesia se tornou inútil e com isto ganhou asas e virou a poesia que é hoje. Uma coisa simplesmente bela, sem nenhuma outra função. No reino das coisas inclusive, só algo inútil tem uma identidade. Só o inútil é livre e só o inútil sobrevive. Sobrevive porque é inútil. Aqui estou falando de coisas, não de gente. No caso da liberdade aplica-se a pessoas também. Gente inútil é livre e quanto mais inútil, mais livre é. Ser inútil é ter sua existência por causa e centrada em si mesmo e só. Ser inútil é não ter alguém para sustentar. É existir por existir sem ser necessário a nada e a ninguém. Uma obra de arte é inútil neste sentido. Uma árvore cuja madeira para nada serve, jamais será derrubada. Um bicho cuja carne ninguém gosta, morre de velho. São as vantagens que a inutilidade traz ao indivíduo inútil. Por outro lado, quando a árvore é útil e o bicho é delicioso, isto será ótimo para a espécie, pois o homem fará cultura daquela árvore e daquele bicho, justamente para consumir os indivíduos. E assim voltamos à frase novamente, só algo inútil tem ou poderá ter uma identidade, uma individualidade. Nós, porém, devemos ser úteis e correr o risco da nossa utilidade, pois devemos ter consciência de que quanto mais úteis formos, menos nossa será nossa vida. Interessante é que a utilidade de um artista consiste justamente em produzir inutilidades porque elas são necessárias. É. Devo ter surtado.